incorruptíveis!
A BRISA DA JUSTIÇA RENOVA A SOCIEDADE
"Uma injustiça feita a uma só pessoa
é uma ameaça para toda a humanidade"
é uma ameaça para toda a humanidade"
A realidade gritante, que nos cerca, exige das
comunidades e dos agentes de pastoral lucidez, coragem, proximidade, coerência e
profecia. Os desafios, em vez de diminuir, aumentam cada dia. A corrupção, a violência,
as injustiças, e as dores e clamores de multidões de pessoas, que sofrem as consequências
de tudo isso ao longo do planeta, exigem novas atitudes evangélicas. Formação
cada dia mais específica. Competência para responder aos gritos dos pobres, dos
pequenos e excluídos. Precisamos revisitar a Palavra de Deus, para encontrar
fontes de água viva para restaurar nossas forças, alegrias, compromissos e
esperanças. De multiplex praças chegam até nós chamadas de atenção, cuidados e vigilância.
A Palavra e a caminhada do Povo de Deus podem iluminar nosso mundo globalizado,
repleto de indiferença e excludente! Por
isso, as comunidades e agentes de pastoral precisamos cantar e sonhar: "A justiça ainda aqui na terra precisa ser segundo o
Evangelho!", como diz um canto
das comunidades. É um sonho, uma tarefa, um desafio gritante e uma assinatura
ainda pendente na realidade brasileira.
Agora estamos na aldeia
global. Novo paradigma. Novos olhares! Tudo ao vivo! Hoje, na sociedade da
informação... Assim poderíamos seguir respigando manchetes. Mas o que não cabe
a menor dúvida é que nunca como hoje se espalham boatos, meias verdades,
inverdades descaradas ou até “fake News!”: notícias declaradamente
falsas, inventadas, com tal de ganhar, levar vantagem ou “tirar uma lasquinha!
Basta abrir os olhos da memória e contemplar a história com lucidez.
Atarefados, e outros tomados de cobiça
Nas reuniões de comunidade ou na avaliação final,
escuta-se frequentemente que as pessoas estão super atarefadas, que não
encontram tempo para a família, nem para se prepararem, nem para nada. Vejamos
um exemplo tomado do Povo de Israel pelo deserto. É bom para nós também
aprendermos. A travessia pelo deserto foi uma caminhada e tanto. Ficou gravada
na memória popular. Durou 40 anos! Foi um grande e demorado aprendizado. Quando
faltava alguma coisa lá chegavam queixas: "falta água!" (Ex 15,24),
"falta comida!" (Ex 16,1-3).
O livro dos Números diz que alguns dos filhos de
Israel se puseram a chorar e a dizer: "Quem nos dará carne para comer?
Lembramo-nos do peixe que comíamos por um nada no Egito, dos pepinos, dos
melões, das verduras, das cebolas, dos alhos!". Só viviam se queixando:
"Agora estamos definhando, privados de tudo; nossos olhos nada veem senão
este maná! "(Num 11,4-6). A comida falta, só tem maná. O problema parecia
ser falta de comida. Mas junto com essas queixas somos informados de outro
detalhe que se passa no coração: um pessoal "que estava no meio deles foi tomado de
cobiça". Conta-nos a raiz de algo muito maior e a causa
disso.
Rumo à terra prometida, passo a passo, Moisés e o
povo vão aprendendo a conviver, a se relacionar e a resolver os problemas e
conflitos quando chegam.
Tudo nas mãos de uma andorinha
Muitas
coisas ficam esperando anos. Processos eternos, engavetados sem data de
vencimento. Enquanto isso, pessoas clamando a Deus por uma justiça que tarda em
chegar.
O livro do Êxodo conta como Moisés trabalha de sol a
sol (Ex 18,13-27). Cansa-se ouvindo o povo que vem consultar a Deus, quando tem
uma questão ou quer conhecer os projetos de Deus. Isso Moisés faz sozinho. Não
dá conta do recado. Vai se esgotar. A tarefa é grande demais para uma andorinha
só. Não vai fazer verão! Porém Moisés e os anciãos têm um papel
importante na travessia. Jetro, o sogro de Moisés, vai iluminar
Moisés para um jeito diferente de "julgar", de atuar e de resolver as
dificuldades.
- Sozinho não dá, Moisés, disse Jetro. Por que te
assentas sozinho, e todo o povo está em pé diante de ti, desde a manhã até o
pôr-do-sol?"
"É porque o povo todo vem a mim. Julgo entre um
e outro e lhes faço conhecer os decretos e a vontade de Deus".
O sogro que tinha visto o jeito de fazer respondeu a
Moisés: "Se continuar assim você vai morrer! Você e o povo também! A
tarefa é muito pesada para você. Impossível realizá-la sozinho! Escuta o meu
conselho para que Deus esteja contigo: "representa o povo diante de Deus,
e introduze as suas causas diante de Deus. Ensina-lhes os estatutos e leis,
faze-lhes conhecer o caminho a seguir e as obras que devem realizar".
O sogro de Moisés era experiente. Era sacerdote de
Madiã (Ex 18,1), tinha sete filhas e ofereceu hospitalidade a Moisés. Na casa
dele Moisés ficou um tempão. Casou com a filha dele, Séfora. Teve um filho,
Gersam, que vai lhe recordar constantemente sua situação de "migrante em
terra estrangeira" (Ex 2,16-22). Na família de Jetro deve ter aprendido
muitas coisas. Jetro era uma pessoa que escutava mesmo, que sabia contemplar a
realidade antes de falar ou aconselhar (Ex 18,1.14). Por isso, aconselha-lhe a
Moisés para governar o povo com sabedoria, compartilhando o peso da
responsabilidade.
Terra prometida, lugar de justiça
Para acolher os apelos e fazer justiça como Deus
quer, Jetro dá para Moisés um conselho, válido até hoje: "Escolhe do
meio do povo homens capazes, tementes a Deus, seguros, incorruptíveis, e
estabelece-os como chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinquenta e chefes
de dez. Eles julgarão o povo em todo tempo. Toda causa importante trarão a
você. Toda causa menor eles mesmos julgarão. Assim eles levarão a carga com
você".
São vários os elementos significativos. A carga será
partilhada, vai ser menor o peso. Causas menores podem ser julgadas logo. Toda
causa importante vai exigir mais atenção, justiça e cuidado. Responsabilidades
vão ser diferenciadas. Além disso é importante salientar os critérios que Jetro
leva em conta para escolher pessoas responsáveis e coordenadores, juízes segundo o coração
de Deus.
- Capazes, competentes,
preparados. Julgar é tarefa difícil. Sempre foi. Isso não se
improvisa. Exige preparação, discernimento, paixão, dedicação, integridade! Num texto paralelo, no livro do Deuteronômio,
Moisés conta como se sente sozinho para carregar todo aquele povo, numeroso
como as estrelas. Insiste na dificuldade de carregar o peso, a carga e os
processos. E por isso, pede para que “escolham homens sábios, inteligentes e competentes de
cada uma das tribos, e ele os constituirá chefes”. Uma vez escolhidos. Moisés
vai ordenar aos juízes: «Escutem seus irmãos para fazer justiça entre um homem
e seu irmão ou imigrante que mora com ele. Não façam acepção de pessoas no julgamento: escutem de
maneira igual o pequeno e o grande. Não tenham medo de ninguém, porque a
sentença vem de Deus. Se a causa for muito difícil
para vocês, tragam para mim, e eu a resolverei» (Dt 1,9-17).
- Tementes
a Deus
O temor do Senhor é um tema recorrente e tem uma
dupla face: faz referência a Deus, em primeiro lugar, mas ao mesmo tempo diz
respeito às categorias mais frágeis da sociedade que devem “nos importar”
prioritariamente. No livro do Deuteronômio encontramos vários convites a ter
essa sensibilidade para órfãos, imigrantes, viúvas. Três categorias que o rei
deve ter muito presentes. “Circuncidem o coração, porque Javé seu Deus é o Deus dos
deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, valente e terrível, que não faz
diferença entre as pessoas e não aceita suborno. Ele faz justiça ao órfão e à
viúva e ama o imigrante, dando-lhe pão e roupa. Portanto, amem o imigrante,
porque vocês foram imigrantes no Egito. Tema e sirva a Javé seu Deus, apegue-se
a ele e jure pelo seu nome” (Dt 10,16-20)
Vejamos o que isso quer dizer a partir de um exemplo
do evangelho. No evangelho de Lucas, um evangelho muito sensível à realidade
dos pobres e marginalizados, encontramos uma parábola ilustrativa de Jesus. «Numa
cidade havia um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum. Na
mesma cidade havia uma viúva, que ia à procura do juiz, pedindo: ‘Faça-me
justiça contra o meu adversário!’. Isso parece a luta de Davi contra Golias. As
viúvas em Israel, tanto no Antigo Testamento como no tempo de Jesus, não tinham
um defensor legal, ficando a mercê dos juízes desonestos: “Os seus chefes são
bandidos, cúmplices de ladrões: todos eles gostam de suborno, correm atrás de
presentes; não fazem justiça ao órfão, e a causa da viúva nem chega até eles”
(Isaías 1,23). Outro texto denuncia a
suprema corrupção: “Ai daqueles que fazem decretos iníquos e daqueles que
escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao fraco e
fraudar o direito dos pobres do meu povo, para fazer das viúvas a sua presa e
despojar os órfãos” (Is 10,1-2). Jesus manda ter cuidado com os letrados, pois,
com “pretexto de longas orações, devoram as propriedades das viúvas” (Mc
12,40).
Apesar do Juiz não se importar com Deus nem com o
povo, depois de muito tempo se recusar em julgar a causa, o juiz por fim
pensou: “Eu
não temo a Deus, e não respeito homem algum; mas essa viúva já está me
aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não fique me incomodando”.
O juiz acaba aceitando a causa pela teimosia da mulher. Mas o texto
original grego é ainda mais forte que algumas traduções. O versículo 5 diz
literalmente no texto original grego: “visto que esta viúva está me importunando,
eu lhe farei justiça, para que não me esbofeteie”.
O juiz em função é “iníquo”: não teme a Deus nem respeita as pessoas. É
significativa esta associação: respeitar a Deus e as pessoas: implicam-se
mutuamente. Certas espiritualidades desconectam uma dimensão da outra e a vida
das pessoas fica “capenga!” e não responde ao projeto de Deus, pois não basta
dizer e louvar: “Senhor, Senhor, Senhor!” (Mt 7,21-24; cf. Jr 7,4-7), se não se
traduz tudo isso em justiça, proximidade, solidariedade com os estrangeiros,
órfãos e viúvas, evitando oprimi-los e derramar sangue inocente.
Neste caso, temos um juiz, que não teme a Deus e não
lhe importam nada as pessoas, e uma viúva, que sim teme a Deus, e luta por
justiça, como as parteiras (Ex 1,17; Salmo 14). Ela vai colocar contra a parede
o juiz até que responda (Lc 18,1-8). Os julgamentos aconteciam na porta da
cidade ou em outro lugar público, de modo que a viúva tinha acesso e podia
reclamar publicamente. A mulher não desespera, insiste teimosa e tenazmente. É
sua única arma. A única arma de seu Jurandir ante o Delegado em Salvador de
Bahia. Mataram seu filho e cada quinze dias, pelo espaço de dois anos, foi procurando
justiça na Delegacia. Tanto incomodou o delegado que decidiu “prendê-lo um fim
de semana”. Procura ver o andamento. Exigia justiça, nada especial, mas o
delegado achou isso “um desrespeito!” Quem procura justiça arrisca, mas se se
resigna acaba fazendo o jogo da injustiça. A viúva luta persistentemente até
que o juiz ceda e se ocupe dela por puro egoísmo: para que não me encha, diríamos em linguagem popular. Mas aqui,
há um detalhe curioso: “para que não me esbofeteie!”. Se isso chegasse a acontecer, seria um vexame
público, incrível. Não deve acontecer! De repente, já tinha acontecido em algum
caso precedente. E assim, a viúva voltou para casa alegre e feliz, com a
vitória na mão!
Quem teme a Deus encontra uma fonte de coragem e
liberdade (parresia), e renova
a sua força como as parteiras Séfora e Fua, e recebe de Deus uma promessa de
felicidade (Ex 1,15-22). Temer a Deus significa, portanto, se importar com a
Palavra de Deus e com a vida, a justiça e a dignidade das pessoas, grupos ou
classes mais desprotegidas: viúvas, órfãos, estrangeiros...
- Seguros,
firmes: não
areias movediças, nem a mercê de qualquer vento de interesse (Lc 7,24-27). Que
não vacilam, nem falam hoje uma coisa e outra amanhã. Que sabem manter o próprio
critério e enfrentar opiniões contrárias. Lembro agora uma história. Faz alguns
anos, em Salvador, me comentava uma pessoa que era assessor de um deputado. O
que vemos é que o tal deputado afirma hoje tal coisa e uma semana depois se
esqueceu do que disse, mas não volta atrás. Só olha para frente! A palavra
dessa pessoa é papel molhado!
- Incorruptíveis!
Os três
primeiros critérios são difíceis de seguir à risca, mas o quarto é quase um
milagre ser encontrado na terra dos vivos! É tão fácil colocar um preço
para cada coisa. Quem não entende isso é bobo. Não tem os pés no chão.
Contemplando os acontecimentos da vida, sintamos a
brisa da Palavra de Deus, pois "toda Escritura inspirada por Deus é útil
para instruir e refutar, para corrigir e formar na justiça, a fim de que o
homem de Deus seja perfeito, qualificado para toda a espécie de boas
obras" (1 Tm 3,16).
Tomara que, hoje, a Palavra de Deus e todos esses
critérios fossem levados em prática pelas pessoas que exercem cargos públicos:
governadores, senadores, prefeitos, juízes, advogados, delegados, fiscais...
Capazes, tementes a Deus, seguros e incorruptíveis, pois "uma injustiça feita a uma só pessoa é uma ameaça para
toda a humanidade".
Justino Martínez Pérez
Missionário Comboniano